“Acreditamos que o universalismo, a comunicação
de nossa civilização homogeneíza as relações entre os homens. Eu penso o contrário: que o que caracteriza nosso século - e não
podemos deixar de perceber isto - é uma segregação ramificada, reforçada, que
se sobrepõe em todos os graus, e não faz senão multiplicar as barreiras”
(J. LACAN – citado no blog – Lacan em.pdf - https://lacanempdf.blogspot.com/
)
“A revolução não é a destruição do capitalismo, mas a
recusa em cria-lo” ( John Holloway – Fissurar o Capitalismo)
Preâmbulo
Para podermos pensar as dinâmicas do Capitalismo em escala
global e dentro ou tangencialmente a ele a Modernidade Periférica, é necessário
elencar algumas das principais discussões (aceitas ou controversas) acessíveis
publicamente sobre o caráter desse novo capitalismo.
“Novo”, no sentido de que o capitalismo possui
intrinsecamente uma resiliência que se alimenta de seus contrários, inclusive.
Há interpretações sobre essa resiliência, em especial sobre aspectos
redistributivos da riqueza produtiva, que são creditadas ou condicionadas ao
tipo de contestação que tem sido feita à dinâmica de acumulação do capital.
Assim, ao longo do século XX, a distribuição da riqueza social adviria das
lutas sindicais e de grupos e movimentos sociais que reivindicavam ganhos
redistributivos, tornando menos predatórios os mecanismos de exploração ou de
concentração da riqueza para os proprietários dos meios de produção e do
capital financeiro.
O Estado tem sido um instrumento dessa mediação, embora sua
função não seria apenas de regular temas econômicos, mas sua atribuição é complexa,
pois trata da regulação, controle e coerção, pela administração
jurídico-política das instituições estatais, o que inclui a coexistência dos
poderes nele instalados, com os respectivos sistemas ou regimes políticos, isto
é, se se trata de um sistema democrático com representação partidária, sistema
de representação mista ou outra forma de efetivação do poder (executivo
monocrático, parlamentarismo, monarquia, equilíbrio dos 3 poderes, etc.).
É necessário elencar um conjunto de temas que podem indicar
em que esse “novo” capitalismo se diferencia dos outros capitalismos, não
apenas daqueles que classicamente foram abordados criticamente, especialmente
pelas teorias do Sistema Mundo, do Desenvolvimento do Capitalismo
e de suas sucessivas crises, principalmente pelas teorias marxistas ou
estruturalistas.
Em geral, as dinâmicas desse capitalismo em permanente
metamorfose tem sido abordadas pelas características dadas pela centralidade de
sua designação, a saber, as dinâmicas do Kapital (escrevo com K, pois
simbolicamente nos remetemos a obra maior de Marx, o Capital). Outra das
características de sua abordagem refere-se à sua temporalidade, ou seja, seu
aspecto histórico. Daí que alguns epígonos dessas leituras são marcados pela
historiografia, como é o caso de Hobsbawn, sem desconsiderar as teorias da
revolução que marcaram as obras de caráter marxista, desde praticamente 1848,
com o Manifesto Comunista, como epifenômeno das crises econômicas e políticas
desse sistema.
Acrescente-se a essas leituras, as teorias do Poder em
Foucault que vão além e se diferenciam das interpretações clássicas de classe e
de lutas de classe, sublinhando que o poder é muito mais difuso e amplo daquele
analisado pelas teorias da exploração e da dominação de classe. O poder, neste
sentido, abarca os dispositivos corporais, da produção da subjetividade e
discursividade, captadas pelos agenciamentos de inúmeros dispositivos (prisões,
sexualidade moldada pelo sistema de moralidade instituída, loucura,
arquitetura, aparelhos repressivos do Estado, práticas religiosas, etc.)
Longe de querermos abordar toda a história do capitalismo,
tarefa que envolveria um projeto de vida (começada em tenra idade,
evidentemente!), deve-se ressaltar a necessidade de indagar outras dimensões
dessa dinâmica sistêmica, isto é, não apenas de desenho estrutural dado por
interpretações da economia e da política, embora indissociáveis dos demais
fenômenos que configuram esse sistema em escala mundial.
Quer dizer, fenômenos da economia (mercado, trabalho, comércio),
da política (poder, governança, democracia, autoritarismo), da cultura, da
ideologia, da arte, da ética, da tecnologia (mídia, automação), da natureza
(crise socioambiental, “globalização da natureza e natureza globalizada”
segundo Porto Gonçalves), dos modos de vida, da produção de subjetividades, das
ciências, etc. podem ser vistas interconectadas, desde que mereçam um
tratamento aprofundado em cada um desses aspectos articulados e articuladores
do processo de constituição de emergências.
Neste sentido, pensar a dinâmica da produção material das
sociedades implica na busca de compreensão das novas modalidades de trabalho,
do desemprego estrutural e tecnológico, do subemprego, da ausência de garantia
de renda e daquilo que Richard Sennet vai designar como a corrosão do caráter desse neocapitalismo, se
comparado com aquilo que foi o clássico capitalismo industrial, com a formação
de uma estrutura de classes definidas, visíveis e suas correspondentes formas
de organização social e política (sindicatos, partidos, parlamento, políticas
sociais) e um determinado modelo de sistema político de relativa estabilidade
democrática pluripartidária.
Essas transformações radicais ocorrem nas sociedades
pós-industriais do centro, antecipadas há algumas décadas pelas teorias de
Alain Touraine (anos 1990), por Manuel Castells (2000) e depois discutidas por
Streeck (“Como vai acabar o capitalismo?”), Negri, Harvey, Sennet, Boltanski/Chiapello, Bauman e
mais recentemente por Thomas Picketty. Todas elas são portadoras de uma
intenção totalizadora ou de grandes mudanças, de caráter estrutural que muitas
vezes dificultam perceber como essas transformações ocorrem em pequena escala,
tanto no centro como na periferia desse Sistema Mundo.
Para ilustrar o que pretendemos apontar nas intenções de
leitura desses fenômenos, em particular daqueles que devem ser verificados por
pesquisas empíricas, constituídas por experiências de vida (e de morte), nas
entranhas dessas capilaridades sistêmicas centrais e periféricas.
Aquilo que nas teorias clássicas críticas ao capitalismo,
especialmente na relação capital x trabalho, indicado muitas vezes como
produção de mais-valia, ou simplesmente como exploração, como fica essa relação
no mundo do trabalho precarizado, fora do trabalho industrial, tais como no
setor serviços (transporte, terceirização dos trabalhos chamados de estética ou
cuidados do corpo, etc.).
A excessiva carga de trabalho que nos remete às 14 ou 18
horas da primeira revolução industrial na Inglaterra, de motoristas de
caminhão, de taxis[1],
de homens e mulheres dos cuidados de estética, como alguns exemplos, sem falar
das atividades informais de ambulantes, diaristas, professores de 3 períodos,
inclusive.
As novas Tecnologias Digitais e a ascensão de redes sociais
teriam destruído o conceito de privacidade, pelo surgimento do Panóptico
Digital? Essa invasão da intimidade tem seu correlato na formatação de outros
sentidos de exposição dessa intimidade, pela formatação de novas fantasias do
desejo?
A mundialização do capitalismo subverteu também a ordem de
representação da doença e da saúde. Eduardo Jardim em seu livro “A Doença e o
Tempo” (Ed. Bazar do Tempo), faz um apanhado histórico sobre o surgimento da
Aids, destrincha sua relação com a militância LGBT e discute a maneira como a
doença afeta a percepção da temporalidade, do sexo e da morte.
A desigualdade nas sociedades periféricas, com ênfase no
caso brasileiro. O livro de Pedro H.G. Ferreira de Souza, Uma História de Desigualdade, Editora
Hucitec, 2019, detalha a concentração de renda no Brasil de 1926 a 2013 e
investiga os efeitos de democracia e ditadura na distribuição de riquezas.
Algumas referências bibliográficas para discussão em
seminário
BEASLEY-MURRAY,
Jon – Poshegemonía – Teoría política y América Latina. Buenos Aires:
Paidós, 2010
HOLLOWAY, John – Fissurar o Capitalismo. São Paulo:
Publ!sher, 2013
HARVEY, David – Espaços de Esperança. São Paulo: Edições
Loyola, 2004.
Outra economia é possível: Cultura e economia em tempos de crise -Manuel Castells – RJ: Editora Zahar, 2019
ECONOMIA DONUT – Kate Raworth,
ed. Zahar,
2019 – 367 pgs.
Atlas da Violência – RJ: IPEA, 2017 - http://www.ipea.gov.br/portal/images/170602_atlas_da_violencia_2017.pdf
[1] Em
maio de 2019 estive participando no IEA-USP, São Paulo, do lançamento do livro ‘Ética
Socioambiental’, do qual sou autor do capítulo 4. No trajeto do aeroporto até a
Universidade, tive a oportunidade de ouvir longas histórias do taxista sobre
como sobrevive como terceirizado, tendo que pagar semanalmente pelo aluguel do
carro. Acorda às 04 horas da manhã e trabalha direto até às 21 horas, todos os
dias. Vindo da Bahia, não pratica nenhuma outra atividade salvo frequentar a
igreja evangélica que lhe forneceu a linguagem figurada da bíblia para falar de
si, do mundo, e dos demais. Este taxista anônimo representa, por assim dizer, a
imagem da moderna exploração, no capitalismo periférico, sobre a qual se
referia Marx quando analisava o aumento da jornada de trabalha, ou a mais valia
absoluta.
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